Na amendoeira em frente à casa, o canto trinado da corruíra é, agora, inaudível, soterrado pelo intermitente conjunto de estrondos intermináveis da construção civil. A ordem urbana é construir, não importa o que se destrua. Quanto mais urbano, mais doentio e atordoante é o cenário, ninguém ou nada sai incólume. E eis que falo, neste momento, exclusivamente sobre os ruídos que vão além dos sentidos.
Há ruído em toda parte. Há barulho. O tempo todo. E a esmagadora maioria das pessoas não percebe, faz que não percebe, ou está tão imersa na feiura baderneira do cotidiano que faz crer que este é o estado natural das coisas. Não é natural, mas, infelizmente, tem se tornado tão comum quanto normal. E a normose é o novo logos, a nova normalidade patológica que se veste de realidade surreal, que extrapola o absurdo, homogeneizando tudo e todos, segundo Weil, citando generosamente o brasileiro Roberto Crema e o Leloup.
O estrondo diário começa com os smartphones arrancando-nos do sono ou do sonho, para ditar que o apito da usina já tocou, que nosso suor e braço estarão a serviço do dono do nosso cansaço, como ensinou Gil na canção ‘Bom dia’, lá no III Festival da Música Popular Brasileira, nos idos 1967, em plena ditadura. E que o atropelo do dia se dará regido ao clangor de um universo de coisas não naturais, inventadas pelos, ditos, civilizados. Tudo ruge loucuras. Aliás, o barulho enlouquecedor é inerente à civilização, não à vida e aos povos que a defendem desde sempre.
O trânsito, sistema composto, em sua grande maioria, de coisas e pessoas coisificadas e, portanto, adoecidas, é um mar de ruídos estridentes que ressoa e ecoa em toda parte, não há como escapar. Está, por exemplo, no ronco egoísta do carro ou moto dos idiotas que acham lindo usar o escapamento aberto, vomitando para a cidade sua necessidade infantil de chamar a atenção usando seu bólido, já que nada em si os faria serem notados verdadeiramente.
A décima quarta vez que a sirene da ambulância ressoa pelo perímetro já nem é percebida, da mesma forma que a sonoridade loquaz da passagem da enésima viatura dos agentes violentos, os quais deveriam garantir a ordem e a segurança pública, faz zigue-zague por entre os veículos civis, sob o pretexto de abordar um jovem preto caminhando, despretensiosamente, com uma mochila nas costas, na proximidade aporofóbica do shopping center ‘classe média remediada ou emergente’. Aliás, a aporofobia, como sugere a filósofa valenciana Adela Cortina, é um grito violento contra a vida.
Tudo grita. Assim como as crianças histéricas vociferando em toda parte, tentando chamar a atenção dos que estão pais. Estes, seguem muito ocupados com o próprio ego ou com as mídias sociais, porém, acham tão bonitinho o fulaninho arrebentando as próprias cordas vocais por coisa alguma que seja tão importante além de clamar e bradar por qualquer falta ou qualquer excesso. Rompem-se tímpanos dos que não têm nada a ver com isso, assim como se constitui uma misofonia cada dia mais frequente e enlouquecedora. Saúde mental? Do que estamos falando?
Em tempo, misofonia (ou Síndrome de Sensibilidade Seletiva do Som - SSSS) pode ser entendida como um fenômeno neurocomportamental caracterizado pelo sofrimento causado pela aversão a determinados sons ou ruídos. Isto resulta em reações emocionais desagradáveis, muitas vezes, irreversíveis, lembrando Jastreboff & Jastreboff. É a nova pandemia. Ou melhor, é a sindemia do momento, o extremamente grave problema de saúde pública decorrente da associação de complicações cotidianas que agem sinergicamente contra o cidadão em seus contextos socioeconômico e socioambiental.
O ruído nas cidades é um sestro desagradavelmente repetitivo, vicioso e viciante. É hipnótico e emocionalmente sísmico. Atordoante e desnorteador. Parece proposital, parte de um projeto de sociedade que se afasta irreversivelmente da natureza. Além da onda sonora que repercute do trovão, dos vulcões e de alguns animais, como o camarão-de-estalo, a baleia-azul e a cigarra, por exemplo, raríssimos são os sons naturais que ultrapassam os 100db. Insisto, ser odiosamente barulhento é um predicado humano.
E o que falar da música execrável que nos assalta a muito mais de 100db, vinda das residências ou dos egomóveis, roubando nossa paz e nosso senso, que nos estremece e nos amputa as faculdades de sentir, apreciar, entender ou julgar? Ou melhor, corrigindo-me, chamar isso de música é um erro crasso. Seria melhor questionar-me sobre os motivos que nos obrigam a sermos impactados pelo dejeto que se despeja desde o conjunto de ruídos que reúne melodia e letra de baixa complexidade intelectual?
O vizinho com hábitos desagradáveis. O narrador de futebol que apenas grita o tempo inteiro do jogo. O brado do bebê com cólica ou fome. A colega que não consegue parar um só minuto de falar. A bola de basquete martelando a tabela por horas no condomínio ao lado. Qualquer espaço kids em restaurantes. Pessoas em espaços públicos ou em qualquer lugar falando alto como se estivessem sozinhas no salão. O infeliz zumbido das notificações dos celulares. Os berros dos pastores discursando como se isso fosse convencer alguém. A descarga do banheiro do vizinho do andar de cima às 3h15 da madrugada. O sino ou autofalante das igrejas convocando os fiéis, incomodando os que não pertencem àquela doutrina ou instituição. A caixa de som tocando sem parar, usada pela loja achando que atrairá clientes ou que isso seja marketing. A playlist repetitiva e excessivamente alta tocando sem dar trégua no shopping center ou no supermercado. A televisão na cafeteria. Os caminhões e ônibus. Qualquer carro de som ou propaganda volante que acaba com a paz do quarteirão anunciando que ‘...está passando na sua rua o caminhão da galinha...’, enfim.
Adoecemos, mental e emocionalmente, como se não houvesse alternativa. Emburrecemo-nos, mutuamente, julgando-nos modernos. Criamos justificativas baratas para nossas crises evolutivas enquanto espécie.
A corruíra continuará cantando e dedicando seu gorjeio à vida. Enquanto os ‘homenzinhos’ seguirão em direção a sua finitude, urrando grosseira, bestial e estupidamente seus ruídos além dos sentidos.
Referências
CORTINA, Adela. Aporofobia, a aversão ao pobre: um desafio para a democracia. São Paulo: Ed. Contracorrente, 2020.
CREMA, Roberto. Análise transacional centrada na pessoa e mais além. São Paulo : Ed. Agora, 1985.
JASTREBOFF, Margaret; Pawel, JASTREBOOF. Diminuição da tolerância ao som: hiperacusia, misofonia, diplacusia e poliacusia. Decreased sound tolerance: hyperacusis, misophonia, diplacousis, and polyacousis. Handbook of clinical neurology, 129, 375–387. 2015. Disponível em:https://doi.org/10.1016/B978-0-444-62630-1.00021-4, acessado em 03 jan 2025.
LELOUP, Jean Yves, WEIL, PIERRE. Les deux extremes de la normose contemporaine: le phantasme de la separativité et le phantasme fusionnel. Paris : 3 eme Millénaire, 1995. SINGER, M. Aids and the health crisis of the U.S. urban poor; the perspective of critical medical anthropology. Sm. Sci. Med. 1994.
WEIL, P. A normose informacional. 2000. Disponível em: < https://www.scielo.br/j/ci/a/wx45x8C8wdjJd9TvcsdxkKN/?lang=pt>.