Therbio Felipe
11 Oct
11Oct

Parte de nossa trajetória profissional foi dedicada a apreender metodologias e buscar aplica-las na produção de um melhor serviço. Muitas destas metodologias se encontravam embaladas pela cansada expressão “qualidade em serviços”, e eram importadas de modelos que em nada tinham de adaptáveis à realidade que vivenciávamos. 

Servir, naqueles ambientes e circunstâncias, era visto como uma capacidade técnica, uma competência a ser desenvolvida à exaustão, uma expressão que demonstrava o extremo domínio dos manuais, além de seguir roboticamente o método e atingir metas. Com quê significado? 

Pensamos que a mera aplicação descontextualizada de um conhecimento leva a alienação por parte dos usuários internos e externos e, com o tempo, ao invariável questionamento das razões por seguir com uma ação baseada em atitudes que não contemplam nem a uns nem a outros. 

É o que percebemos quando adentramos à porta de determinados estabelecimentos comerciais e somos recebidos com jargões frios e impessoais, mecânicos e desprovidos de naturalidade, portanto, de beleza. Mais surpreendente é verificar que alguns clientes, em pleno século XXI, ainda se deixam iludir por tais gracejos e artimanhas que objetivam, apenas, a conversão. 

Ao longo de nossas aprendizagens, fomos nos dando conta que havia certa necessidade de repensar o significado do ato de servir, dar-lhe ou devolver-lhe a nobreza do cuidar. Cuidar, este, que em algum momento se pulverizou entre metas de vendas superadas, taxas de ocupação e diárias médias que encantavam as superintendências e os acionistas. E alguém irá dizer: mas é disso que se trata o negócio! E, nós, responderemos: sempre há uma maneira de melhorar tudo, inclusive a nós mesmos, como pensamos e o que fazemos. 

Sim, reforçamos, servir é a nobreza do cuidar e sua própria essência, ao mesmo tempo. Voltar a atenção ao outro de forma a promover, nele, a sensação de que tem um significado para nós. É perceber o outro e o que traz consigo de forma válida, valorosa. Ao declarar isso, queremos afirmar que o cuidado, e, portanto, o servir, têm uma fenomenologia. 

Nesta perspectiva, não se trata de pensar e falar sobre o cuidar e o servir, mas a partir do cuidar e do servir. Não temos cuidado, somos o cuidado. Não, apenas, servimos, somos o servir. Está em nossa matriz neurobiológica, mas não intuitivamente. Somos o cuidar e o servir conscientemente, porque pensamos, sentimos e escolhemos a respeito. Faz sentido cuidar. Faz sentido servir. 

Heidegger, em Ser e Tempo, diria que as realidades fundamentais, como o querer e o desejar, estão enraizadas no cuidar e no servir, fazendo crer que emergem dele. É imperativo, em todos os campos do fazer humano, desmistificar o servir e tratar de ressignificá-lo. 

É necessário, mais do que urgente, portanto, compreender o servir como uma atitude de cuidado. Servir é tomar conta da necessidade do outro. 


Ao contrário do que se costuma pensar, a ideia que nos foi plantada na mente é que o servir está muito ligado ao nosso passado cravejado de servidão, de servilismo. Ou seja, de um sistema ou regime que submete um indivíduo ao jugo ou controle do outro por uso da força, da ameaça, da intimidação e que humilha quem está a serviço. Um pensamento medieval, porque não dizer, mas tão atual, infelizmente. 

No tocante ao âmbito do servir, muitas empresas e, porque não dizer, famílias, organizações, instituições de ensino, enfim, ainda detém e se movem por um pensamento feudal, baseado na coerção e na coação. Para nós, não servir é deseducar o humano. 

Nos deparamos, nos ambientes corporativos, com inúmeras formas de conceber um serviço, ato de dar atenção a uma situação demandada por alguém, a quem o senso comum chama de cliente e nós, por escolha, chamamos de parceiro. A razão de ser da prestação de serviço é o servir. 

Há muito temos visto a desumanização do processo do servir, como se o desempenho, o custo e a venda, enfim, fossem ainda mais importantes e, de quebra, suficientes para a manutenção do ciclo vida de empreendimentos, marcas e produtos. 


Para nós, há pelo menos cinco maneiras de compreender melhor o ato de ressignificar o servir. 

1) Podemos começar pelo auscultar, ou seja, escutar intimamente, proveniente da expressão em latim auscultare. É o que faz o médico ao analisar um paciente: ele ouve profundo. Se origina daí, por conseguinte, a palavra escutar. Trata-se de silenciar-se a si para ouvir o outro, atentamente, a ponto de diagnosticar suas necessidades implícitas e/ou explícitas. 

2) Para ressignificar o servir, também se faz necessário usar o que chamamos de “paciência ativa”. Resume-se em permitir que o parceiro exponha em seu próprio ritmo suas necessidades, expectativas ou demandas. Cada um tem o seu tempo, já diziam nossas avós, e elas continuam tendo razão. 

3) E, seguindo nesta esteira, quem serve necessita ser veloz sem pressa, a fim de realizar cada ação dentro de uma lógica de tempo aceitável para o outro, ainda que de forma surpreendente. Lembramos, sempre, que velocidade e pressa não são a mesma coisa, e a segunda lembra falta de organização, despreparo, falta de domínio e ainda, um desrespeito com o outro, porque quem age com pressa deixa para fazer tudo na última hora, baseado em sua pretensa habilidade, e não dá o devido tempo à atenção a que se dedica. 


4) Cabe a quem serve, de igual maneira, saber interpretar a natureza de um pedido, observando o que está oculto nesta comunicação. Muitas vezes, as pessoas nem mesmo sabem o que querem de forma clara. Portanto, expor o que se quer se transforma num desafio incomensurável. Mais ainda, vale pensar que todos, sem exceção, estamos carentes de atenções e que possamos ter dificuldades para externar o que se precisa. Interpretar a natureza de um pedido é ir além do óbvio, daquilo que se explica por si só. A palavra empatia até pode ser usada, mas nem de longe resume todo o processo de interpretar a natureza de um pedido. 

5) E, por fim, mas não menos importante, para ressignificar o servir é fundamental oferecer resultados que carreguem outros resultados, consigo. Quem soluciona com objetividade atende, apenas, à realidade momentânea esperada. É um pensamento superior considerar que o tal encantamento, tão desejado por grande parte das empresas do setor de serviços, esteja em ir além do que está dado, daquilo que é pragmaticamente possível. Ofertar soluções plurais, por sua vez, acarreta em gerar, no parceiro, a ideia que temos a oferecer muito mais do que ele procura, e que somente em nosso servir encontrará mais do que em qualquer outra parte. 

De tudo o que se precisa para ressignificar o servir, a humildade é o que faz com que o servir se torne o vir a ser. O humilde que serve promove a consequência desta ação, criando relações ou relacionamentos. Somente assim o futuro se borda ou se tece. 


Reforçamos, humildade não é humilhação. Ao agir com humildade, encontramos regozijo em servir, em cuidar. A humilhação deve ser vista como a indignidade onde a virtude não habita, algo que não deveria constar em nossas práticas. A humildade, por sua vez, ajuda a sermos ampla e naturalmente dignos, virtude de encontrar beleza e magnificência em sermos tão mais modestos quanto possível for, em sermos simples. 

A humildade, em suma, faz com que quem serve se torne grande sem sabe-lo.

E para encerrar nossa reflexão, lembramos das dimensões características da fenomenologia do servir. 

Começamos por tratar de considerar a intransitividade do servir. Quando servimos a alguém, o que fazemos é intransferível, não pode ser migrado para outra parte ou pessoa, senão aquela a quem dedicamos esta atenção. 

Servir é, também, inestocável, pois não há como guardar para depois uma atenção, um cuidado, uma gentileza, o que torna o servir perecível se não for recebido como tal. 

De igual forma, o ato de servir é intangível, não se pode tanger, conter, incorporar, tatear, o que lhe faz tão complexo de perceber ou valorizar. Uma bolha de sabão soprada pelo vento cria um hiato de abandono de beleza quando se desfaz, deixando-nos órfãos. 


Tal como aquilo que, simultaneamente, se produz e se consome ao mesmo tempo, o servir é caracterizado pela inseparabilidade

Por todos estes aspectos inerentes à natureza intransitiva do servir, ele é insublimável, ou seja, não pode ser trocado ou substituído por qualquer coisa de qualquer outro tipo de natureza, senão por aquela que lhe contenha. 

O que fazemos nos explica. A forma como pensamos o que fazemos, também. A maneira como entendemos o servir e o ressignificamos, explica, por sua vez, como cuidamos das pessoas. 

É de pessoas melhores, como sempre dizemos, que o mundo precisa. Então, assim desejamos, que ao ressignificar o servir, o servir nos dê um novo significado.


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