“Cozinhar é um modo de amar os outros.”
O Fio das Missangas - Mia Couto
A frase em destaque, tão docemente potente, é advinda do sentipensar do querido escritor e biólogo moçambicano. Ela, a frase, pode ter tido gênese no fazer culinário doméstico, nas cozinhas de memória repletas de mães, avós e tias-avós, absortas entre a doação por Amor e a obrigação, esta última equivocada e culturalmente admitida nos âmbitos familiares como ‘parte natural do fazer e ser feminino’. Isto, certamente, será tema de outro ensaio específico, em breve.
Por vezes, o cozinhar desobrigado no lar ao fim da tarde, ou em um domingo, quem sabe, até pode ser considerado terapêutico e diletante, uma forma de desconexão e introspecção. No âmbito privado, sem correr riscos superlativos, é uma linda terapia. Que maravilha!
Mas, quando voltamos nosso olhar para a realidade das cozinhas profissionais situadas nos bastidores de restaurantes comerciais pelo mundo adentro, sobram motivos para considerar que se trata de um dos cenários mais hostis e preocupantes das relações de trabalho.
E, repare, que estamos falando a respeito de uma classe trabalhadora responsável pelo alimentar comercial, área que envolve saúde, segurança e bem-estar e alcança, diariamente, incontáveis bilhões de pessoas. A realidade está bem longe do glamour como ostentam e romantizam, intencionalmente, as mídias sociais, a baixa criticidade do público e do senso comum.
Em tempo, por trás do glamour que se sustenta em aparências ou imagens, 90% dos chefes de smartphones são provenientes da classe média alta, financiados pela família, brancos e homens. Somente estas poucas considerações já afastaria deles uma enormidade de problemáticas que afetariam sua saúde mental ao longo do tempo. Mas, vamos um pouco mais a fundo.
Estes mesmos ‘chefes’ nunca pegaram um rush de produção num evento para 800 convidados; nunca foram assediados sexual ou moralmente pelo seu superior no ambiente de trabalho e, ainda, tiveram que ficar calados ‘para não perder o emprego’; não têm ideia do que é estar com 3 férias vencidas e ser obrigados a trabalhar ‘quietinhos’; nunca tiveram a necessidade de ter que acatar 12 a 14 horas diárias de trabalho criativo, num ambiente com temperaturas que superam, facilmente, os 35 graus com umidade a 70%, usando calçados e uniformes inapropriados, em frente a equipamentos obsoletos ou com defeito.
Estes que se intitulam ‘chefes’ por terem, apenas, feito um curso caro em alguma escola oportunista e ganhado dos 'papais' um restô montado em bairro nobre recheado de emergentes, jamais se fizeram cozinheiros e, portanto, jamais foram obrigados a trabalhar vendo ser esfaqueados seus direitos ao descanso, insalubridade e adicional noturno. Tudo isso sob o fogo cerrado de ameaças, cobranças indevidas, descontos punitivos ou outras formas de coação.
Onde está o glamour? Como manter a sanidade mediante um contexto com estas características?
Isto que expomos também está contido no âmbito da soberania alimentar, porque envolve as políticas e práticas de produção de alimentos, impactando até mesmo as condições para a justiça socioambiental, porque a cadeia dos alimentos não está circunscrita, tão somente, ao campo e à distribuição.
Ela também perpassa a rede de serviços de restauração e chega ao nosso prato para revitalizar forças e ânimos. Afinal, é disso que se trata: restaurar!
Estamos falando de um mundo à parte, um multiverso apenas conhecido por quem lá atua e luta criativamente sob a pressão tóxica, assoladora e contínua dos proprietários (que não entendem nada de cozinha, muitas vezes), em meio a colegas puxadores de tapete e superiores fanfarrões, buscando sobreviver às jornadas intermináveis de trabalho que levam, invariavelmente, a um esgotamento mental e físico.
Resultado disso, entre tantas cruéis possibilidades, é uma longa lista de impactos nocivos que recaem sobre os profissionais de cozinha todos os dias, dentre eles a ansiedade e o alto consumo de álcool, cigarro e drogas; dores crônicas; o desenvolvimento de doenças autoimunes; o surgimento de distintas formas de agravamento da baixa saúde mental; distúrbios do sono e do humor; isolamento social; impactos negativos sobre os relacionamentos de amizade e família, entre inúmeros outros.
Muito infelizmente, em alguns trágicos casos, chega-se até mesmo ao suicídio, lembrando, entre tantos colegas, o carismático e talentosíssimo chefe Bernard Loiseau (talento que inspirou a animação Ratatouille), que tirou a própria vida aos 54 anos, em 2003; Benoît Violier, em 2016 e, mais recentemente, Anthony Bourdain, em 2018, entre centenas de outros e outras que não viraram notícia por não serem famosos. E, apenas, citamos os topos da hierarquia. Imagine quando tudo isso alcança os cargos ou funções subalternizados, caracterizados colonialmente como 'auxiliares'.
Por outro lado, a esmagadora maioria dos comensais, seja na parte do planeta que for, nem sequer imagina o caminho percorrido pela comida que têm no prato diante de si.
Entre insumos, técnicas, energia, tempo, recursos, personagens, enfim, são incontáveis os fragmentos socioambientais que compõem o que chega à mesa e que, invariavelmente, deveriam conter excelência de sabor, aroma, aspecto e higiene. Há sonhos e vidas servidas no seu prato. Já pensou nisso?
Levando isto em consideração, vale refletir, também, a respeito do comportamento cada dia mais desumano e utilitarista das sociedades à mesa, o quanto isto impacta, sobremaneira, os ambientes do cozinhar profissional.
Basta um olhar displicente e uma breve reflexão para perceber que o ato de se alimentar em ambiente comercial está compreendido, ou prensado, entre os poucos minutos dedicados à alimentação no cotidiano das pessoas. Isso se deve à pressa, à hipnose do tempo dedicado às mídias sociais ou, ainda, ao tempo mínimo de intervalo para alimentação garantido pela legislação vigente, apenas para elucidar.
O carro virou a nova sala de jantar, enquanto os refrigerantes são o 'prato complementar' induzido como acompanhamento.
Ao invés de restaurar-se, as pessoas estão, equivocada e alienadamente, se vendo culturalmente obrigadas a abastecer-se ou a entupir-se, compulsoriamente, a exemplo do coitado do ganso cujo fígado vira o malfadado e infame patê de gosto duvidoso.
Isto somado ao irreparavelmente crescente mercado de fast & junk food, também vira pressão sobre o dia a dia de profissionais de cozinha que levam tão a sério seu ofício e sua sina.
Remetendo, por fim, ao cenário de amor contido no começo deste ensaio, promovido pela frase-guia de Mia Couto, nos questionamos, humildemente, como conseguiremos amar as pessoas por intermédio do que fazemos se, a cada hora, mais se enferma nossa saúde mental em decorrência da distopia a que está vinculado o universo do cozinhar profissionalmente?
Vamos conversar a respeito?